21 de junho de 2010

Aqui e Lá

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Sabe o que acontece? Nem eu! A cabeça nessas horas é turbilhão e manda sinais desordenados para o coração bater mais rápido, para o sono se manter mais ausente, para as funções básicas do organismo se desregularem, para os lábios começarem a ser mordidos por dentro e as unhas ficarem menores e irregulares. O corpo cansa, a mente não. Muita coisa chega ao campo magnético dessa ferramenta poderosa que altera o curso das coisas e a faz ficar tão estafada que eu posso olhar para aquela lista de coisas pendentes que eu continuamente faço e refaço e perceber que não saí do lugar. Lugar, aliás, é que está sendo o problema... e solução ao mesmo tempo. É a hora que a balança libriana entra em parafuso.

Lá é o lugar que sempre me senti seguro, às vezes muito seguro, dono de mim. Meu trabalho não era dos sonhos, mas eu me empenhava para fazer dele o melhor. Disso saíam bons resultados e elogios. Lá é um espaço onde eu tinha domínio do meu território, e sempre briguei intensamente por ele. Lá é o lugar onde os amigos estavam sempre prontos pra gente se divertir junto e também para conversas de horas cheias de conselhos e desabafos, ou ainda sobre as banalidades do transporte público ou daquele programa de TV. Lá é o lugar onde a vida é mais fácil, onde tenho todos os elementos que me protegem, me cuidam, me olham, me cercam.

Aqui, por outro lado, é o lugar onde as coisas acontecem. Não falo só da badalação do novo gadget ou do show do momento; aqui as coisas acontecem quando você fica doente, precisa se locomover ou mesmo fazer as compras do mês. Acontecem no dia-a-dia. Aqui a vida é mais difícil, mais desafiadora e isso também faz daqui um lugar fantástico e dinâmico, que conseqüentemente te move junto com a correnteza do rio.

Aqui ninguém liga se eu sair na rua de chinelo, camisa floral, cartola e saia escocesa. Talvez me achem excêntrico, mas dificilmente perderão mais de 5 segundos de suas vidas ocupadas comigo. Aqui não ligam se eu sou novo ou velho, homem ou mulher, gay ou hétero, brasileiro ou polonês. Aqui você tem que mostrar a que veio, sem carregar como pré-requisito as etiquetas e rótulos sociais que a maioria não faz questão nenhuma de te colocar. Aqui é um caldeirão multicultural que fervilha diferenças em torno de interesses comuns, o que torna mais viável a aceitação do outro, que não tem, num geral, uma rotina muito diferente da sua. Mesmo que ganhe o triplo, ele sabe que o jeito mais fácil de chegar ao trabalho é de metrô. Lá também se sabe, mas é melhor cobrir os olhos, dar um sorriso e seguir em frente.

Lá se sorri muito, aqui não tanto. Lá também se sorri muito de mentira, aqui não tanto. Lá se tem simpatia, aqui se tem respeito. Lá rola hipocrisia, aqui uma possível solidão. Lá se tem a idéia de que o que sai daqui é o melhor. Aqui o produto interno é valorizado e ainda assim o externo, respeitado. Lá a idéia é multiplicar, aqui dividir. Lá você tem o melhor atendimento do mundo, aqui o mundo no seu atendimento.

Lá e aqui são opostos. E gêmeos. Tem diferenças que pesam e procuram o equilíbrio dentro de quem transita entre as duas localidades. É o que acontece comigo. É o que me traz o turbilhão.
Aqui as janelas de vidro nos escritórios deixam todo mundo acompanhar a rotina do outro. Mas, pra ser sincero, ninguém se importa tanto assim com a rotina trabalhista de um estranho. Estranho esse que por conseqüência tem a sua vida exposta, mas ao mesmo tempo mais liberdade do que teria por lá. E ele se esconde mais eficientemente do que seria se fosse lá.
O povo de lá que está aqui traz um pouco do gostinho bom de casa, mas me faz lembrar também que eles têm um “jeitinho” pra tudo e sempre, que pode atrapalhar essas memórias boas e lembrar que estando onde estiver, têm em sua natureza o “tentar levar vantagem em tudo”, mesmo que pra isso tenha que passar por cima ou trapacear o outro que mora com eles. E isso é triste, aqui ou lá.

Em contrapartida, o povo de lá tem ginga natural, que o povo daqui se esforça pra imitar e não consegue de primeira, soa artificial. O povo de lá também tem música com essa ginga, uma música muitas vezes menos lógica e técnica do que aqui, mas que contagia os de cá, que só repetem as frases sem sentido que ouvem, assim como o povo de lá repete, com mais idolatria, as músicas daqui, voltando ao paradoxo valor e respeito.

Mas tanto aqui como lá algumas similaridades tomam corpo à luz do passar do tempo. O banho, por exemplo, seja onde for, é o meu pensar mais profundo, intenso, lógico e prático. É uma pena que não consiga verbalizar tão bem quanto pensar no banho. Tanto lá como aqui há burocracia, impostos altos e políticos corruptos. A diferença é que aqui os resultados dos impostos são retornados para a população, a burocracia serve de registro eficiente na maioria das vezes e a corrupção deve ser retratada publicamente de maneira satisfatória.

Lá, a aparência conta muito. Além da física e pessoal, a casa deve ser bonita e imponente para que os outros tenham uma boa impressão do seu trabalho, que deve trazer status, nem que seja só na nomenclatura do cargo que se carrega no crachá. As roupas tem que nos deixam deslumbrantes, mesmo que sejam desconfortáveis. Aqui importa mais a funcionalidade das coisas, sendo elas, portanto, mais simples. As casas são praticamente todas iguais, principalmente externamente são gêmeas uma das outras. O trabalho tem que recompensar as necessidades de cada um, independente se sua função é garçom, recepcionista, gerente, pesquisador de marketing, representante ou dono da empresa. E todo mundo sabendo disso, respeita o outro, sem olhar de superioridade.

Mas agora lá é aqui e aqui é lá. Tudo mudou... de novo. Mas muita coisa não mudou. Outras são completamente diferentes. A adaptação entre o aqui e lá parece muito mais difícil agora do que quando a direção era daqui pra lá, mesmo que trouxesse incertezas (e talvez exatamente por isso parecesse mais fácil). A família daqui não consegue e não vai conseguir entender quão doloroso foi deixar lá. A família de lá consegue entender uma parte disso, por viver situação similar na troca do aqui e do lá. Só a família de trânsito, a que caminhou aqui e lá, a outra peça no meio termo, é que sabe que além de tudo isso, o plural vira, em termos, singular. Mas sabe também que há uma marca que esse processo deixou e que vai manter uma ligação eterna.

Entre singular e plural. Entre aqui e lá.
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